Reproduzo na íntegra um texto de Rui Tavares publicado hoje no Jornal Público.
Trata-se de uma análise ao mesmo tempo cínica e realista sobre as duas realidades que se confrontam quase em permanência no mundo Ocidental: a belicista e a pacifista(ou nalguns casos, "o deixa andar que isso não me diz respeito!").
Cumprimentos
RC
Inconcebível! Inaceitável!
05.04.2007, Rui Tavares
No momento em que escrevo, a imprensa internacional dá como certa a libertação dos marinheiros britânicos que desde 23 de Março estavam reféns das autoridades iranianas. Como já houve guerras que começaram por menos, a confirmação desta notícia trará um momento de alívio ao Mundo.
Para os belicistas de um lado e do outro, porém, é uma notícia perturbante. Afinal, vinha aí uma guerra novinha em folha, agora que a do Iraque está velha e gasta. Durante duas semanas, vivemos como nos tempos da guerra fria, num mundo de realidades incompatíveis. Tudo era inadmissível ou inaceitável. A única solução era falar grosso e ameaçar com a força. Para o Ocidente, era inconcebível admitir que os marinheiros britânicos pudessem ter entrado em águas iranianas; para o Irão, era inconcebível que eles não fossem julgados por espionagem, a não ser que os britânicos pedissem desculpa. Para os britânicos, um pedido de desculpas seria "perder a face"; para os iranianos, a libertação dos marinheiros sem pedido de desculpas seria "perder a face". E "perder a face", como sabemos, é a pior coisa que pode acontecer a um político - perto disso, morrer, matar e mutilar são problemas menores.
Só um capitulacionista como Hans Blix, o homem a quem foi necessário desautorizar e humilhar para que houvesse guerra no Iraque, poderia sugerir que "a capacidade de perder a face ainda um dia salvará a espécie". Em inglês, rima e tudo ("the ability to loose face / will one day save the human race"), mas esta é sempre uma realidade difícil de engolir. Atrasar assim o relógio da guerra é quase uma deslealdade.
No mundo dos belicistas, não há espaço para hesitações: ou se é forte, ou se é fraco. Pior ainda: só se é forte se andarmos a proclamar permanentemente a nossa força. No mundo belicista, dialogar já é um sinal de fraqueza e nunca ninguém ouviu falar em desculpas simbólicas e em declarações pró-
-forma. O reconhecimento de que a fronteira marítima entre Irão e Iraque não foi nunca acordada e uma declaração simultânea sobre como seria desejável evitar qualquer entrada acidental em águas alheias poderia resolver a situação sem nenhuma das partes admitir o erro inicial. Inconcebível! Inaceitável! Inadmissível! Nancy Pelosi, presidente do Congresso americano, desobedeceu ao seu Presidente e foi à Síria entregar uma mensagem do israelita Ehud Olmert ao sírio Bachir Al-Assad. Inadmissível! Inaceitável! Inconcebível! A diplomacia funcionou. Inaceitável! Inconcebível! Inadmissível!
Mas os belicistas não devem desanimar. Não faltarão novos casus belli, que é a forma elegante de dizer "pretextos para entrar em guerra". Qualquer deles será até mais sério do que os últimos. Os iranianos recusam-se a suspender o seu programa nuclear. Os EUA recusam-se a reconhecer o regime iraniano. Ninguém nega que os serviços secretos estejam no terreno iraniano tentando promover rebeliões nas províncias sunitas do Balochistão e árabes do Kuzestão. Os cinco diplomatas iranianos que foram capturados num consulado do seu país no Iraque sob uma acusação de espionagem continuam presos (não me admiraria que alguma "inadmissível" concessão tenha sido feita em relação a estes cinco reféns para ajudar à libertação dos outros 15). E, acima de tudo, os belicistas de um lado têm os belicistas do outro, que tudo farão para que desilusões destas não se voltem a repetir.
Para os restantes, contudo, foi um bom dia neste planeta. Quinze marinheiros voltam para casa. A guerra está um pouquinho mais longe. Às vezes, o inconcebível acontece. Historiador