domingo, março 26, 2006

Violência Revisitada


A violência emerge com uma força tremenda na produção contemporânea de imagens. Nessa reprodução e saturação da violência, em outros dos seus desdobramentos, pode ainda ser associada ao prazer, ao consumo, à criação de identidade [construindo uma busca individual] e à utilização de símbolos de vitória e projecção.
Neste sentido, a televisão e o cinema tem o desconforme poder de fazer com que o espectador se depare com a dura realidade e ao mesmo tempo, paradoxalmente, provocar uma sensação de ficcionalização dos factos reais, uma espécie de estado de alienação [em escala maior chega a coerção social]. O telejornalismo e o Cinema documental percorrem esse caminho através de uma desajustada forma de autismo crítico que amortece uma expansão emocional imediata, sobretudo quando os factos reais aparecem na tela sob a forma de catástrofe. Se as imagens-choque e as imagens dos filmes de índole documental estão numa percepção imediata é natural que as aceitemos desta mesma forma, mas se nos debruçarmos sobre um aforismo sociológico retiraremos outras conclusões: este tipo de conjunturas ocorre sempre em situações dramáticas extremas [violência, medo, morte…].
Contextualização: Brasil. Se o “documentário brasileiro” é hoje bem sucedido, é antes de tudo um fenómeno de carácter económico-social: retratando, não só as seduções de consumo que contribuem para fomentar a crescente frustração dos jovens urbanos no Brasil imersos por necessidades económicas que impedem dramaticamente as suas expectativas sociais e possibilidades de invenção de um futuro fascinado pelo reconhecimento social, mas também esses mesmos habitantes das grandes cidades brasileiras que são atormentados pela violência urbana ostentada quotidianamente nos meios de comunicação. Pelos Mídia surge uma agonia intensificada, inclusive, porque ela possui base narrativa, enfatiza a dramatização da morte e do medo, aguça a tensão, o pânico repercute-se e há uma suspensão da ficcionalidade. A violência é aqui compreendida tanto como manifestação de uma realidade ignóbil, sórdida, violenta, manifesta e ostensiva na vida quotidiana [implicando constrangimentos físicos e morais no uso da força, na coerção, na violação da integridade física e psíquica], quanto na sua dimensão subjectiva, indirecta e, inclusive, no que diz respeito à sua mediatização. Na intersecção entre o concreto e o simbólico, a violência manifesta-se como produção e linguagem estética, como forma de ser, de se comunicar, de vivenciar, de apreender e interpretar o mundo. A linguagem da violência, por esta via poética, não elimina o impacto com o real, muito pelo contrário, vai funcionar como paradigma reprodutivo impulsionador da própria violência real.
Mas como representar a violência e a pobreza sem reproduzi-las na construção e reprodução de imagens? Como criar outros mecanismos para o Cinema e televisão? Como fugir desses registros?
Nessa neblina de referentes e na cultura do medo gerada pela violência e sua repercussão mediática, o realismo ganha legitimidade estética. Em filmes e ficções que retratam as novas realidades urbanas, algumas expressões do realismo estético tornam visível e legível a fragmentação caótica da cidade e a violência urbana. A violência, por sua vez, impõe-se sobre o fluxo familiarizado do realismo do dia a dia e dialoga com a espectacularização do real mediático apresentado nos reality shows, nos noticiários televisivos, nos programas sensacionalistas e na telenovela diária. Os diversos códigos do realismo narrativo ganham legitimidade na medida em que buscam dar conta de modernidades urbanas desordenadas enquanto que alguns produzem a violência através de recursos dramáticos próprios da ficção que, entretanto, intensificam uma sensação do real. A valorização do realismo contemporâneo e a utilização de pessoas pobres, de bairros periféricas e anónimas no cinema documental faz parte da modernidade global que, entretanto, na saturação de imagens e narrativas, exploram o real como um recurso de impacto estético e particularmente no Cinema Brasileiro destaca-se unidades temáticas como a violência, a pobreza, a favela e o tráfico de drogas. A favela já está presente no cinema Brasileiro há muito tempo, não é de agora, mas assim como o neo-realismo italiano tem na cidade o seu personagem, o cinema documental Brasileiro tem a favela e o subúrbio. Mas o morro não é mais o mesmo. Redes ligadas a tráfico de armas e drogas tomaram conta do espaço. Assim o lugar das representações da violência e pobreza urbana no Cinema é outro.
Contudo, esta valorização de novos registros realistas está longe de ser um fenómeno Brasileiro. Nanook, [acusado de ilusionismo e idealização da realidade, a obra-prima de Robert Flaherty aparece na década de 20 como um desafio marcante aos territórios demarcados pelo cinema]; o Neo-realismo italiano [nova estética que buscou retratar aspectos mais objectivos ou reais da sociedade, pondo em cena os dramas quotidianos das camadas pobres ou das classes proletárias, urbanas e rurais, assumindo também uma crítica ideológica anti-fascista]; Jean Rouch [ultrapassou os conceitos da ilusão e do real na construção do espaço cénico/narrativo, entrecruzando, como nunca antes, as noções de objecto e de observador] e Dogma 95 [movimento de cineastas fundado em Copenhaga e que tem o compromisso formal de levantar-se contra "une certe tendance" do cinema atual], todos estes autores e movimentos já abordaram esta conjuntura teórica da estética realista.
No caso da recente produção brasileira, os registros realistas [na televisão e Cinema] oferecem retratos do contemporâneo que tematizam a favela, os subúrbios pobres, as prisões e a saga de personagens marginais abrangidos pela violência, pela exclusão e pela pobreza.
Mas será que a disputa pelo controle das representações, que existe no mundo inteiro, assume significados específicos no Brasil [?], uma vez que o controle social sobre o que será representado, como e onde, está ombricado com os mecanismos de reprodução da desigualdade social [?].

Se temos uma ficcionalização e espectacularização do real nos jornais, televisões, cinema e Internet, também temos uma crescente demanda por um "real" que pareça fruto de uma vivência palpável. Mais do que isso, trata-se de entender a sociedade enquanto valor-de-informação, ou seja, no que ela faz, produz e comunica, já que todo o processo de trabalho é simultaneamente um processo de comunicação.
Há uma apropriação de mecanismos de construção da representação como dimensão intrínseca do documentário e que, por vezes, recorre a convenções da ficção. Essa ambivalêcia é consequência do desencantamento do sujeito em relação ao mundo que forjou a separação entre fantasia e verdade, entre mito e razão, entre o objetivo e o subjetivo, entre a realidade e a ficção. É precisamente entre a fadiga [produzida pela própria Mídia] e a excitação [individual ou colectiva] que consumimos o quotidiano dos meios de comunicação.
Por isso, é possível que o público se tenha direccionado um pouco mais para o registro realista na busca de ver representado o que lhe possa parecer, por paradoxal que seja, mais real e ficcionalmente elaborado.
Vasco Lopes
Rio de Janeiro

4 comentários:

RC disse...

Antes de mais bem vindo Vasco.

Mais um belíssimo texto, bem ao jeito dos comentários a que nos habituaste!

Quantoao tema que abordas, acho que se pode extrapolar para outras sociedades, que não só a brasileira!

Esta forma de mostrar a realidade, foi, na minha opinião, copiada do cinema Americano, ou não tivessem os últimos filmes brasileiros com sucesso internacional, tido a colaboração de Hollywood. O único problema que vejo nesta forma de fazer cinema, e televisão, é a forma sensacionalista como se apresentam os problemas ao público. Olhando para o que se tem passadonos últimos anos em Portugal com o problema dos incêndios, será que foi benéfico passarem horas a mostrar o fogo?! Será que tal não funciona como um incentivo para eventuais pirómanos, que vêm a sua obra mostrada a todo o universo de espectadores de um telejornal que por norma passa em horário nobre.

A grande questão que coloca ao jornalista/realizador é apenas, será que devo dar ao espectador o que ele quer ou manipular por forma a tornar a coisa menos espectacular! Ou seja o que está em causa é as audiências! O dinheiro.

A grande virtude de filmes como "A cidade de Deus" e outros que sairam da mesma escola (por acaso não assisti ainda a este filme, mas no festival de cinema cá do Burgo já assisti a outros 2 que sairam da mesma escola, dentro do mesmo género e tive oportunidade de conversar com o realizador de um deles), é que alertaram o público internacional para os problemas sociais da sociedade Brasileira. Para muitos Brasil, era sinónimo de praia, Flores, paraíso! Mas, no fundo, a realidade é bem diferente!

Abraço,

RC

viking disse...

Olá pessoal,

Concordo com o Ricardo no que se refere a mostrar a outra realidade da sociedade brasileira através do filme-documentário . Creio que tem algo a ver com a barreira da língua, mas a situacão nas favelas e os problemas sociais do Brasil nunca foram nenhum segredo em Portugal, mas para o resto do mundo sempre pareceu como algo secundário a comparar com o Copacabana, Carnaval e futebol.

Abracos
Paulo.

Anónimo disse...

PARA o RC

Pois é… todo o efeito de verossimilhança no Cinema busca oferecer-nos algum elemento essencial na construção das nossas vidas. Esta permissa, de facto, já é utilizada desde os primórdios do Cinema. Não se trata de um fenómeno brasileiro. E cada vez mais está a ser utilizada nos registos televisivos. O seu procedimento, a sua linguagem e o seu estilo cinematográfico conseguem reorganizar criticamente elementos já conhecidos do cinema, construindo uma "verdade". Mas a verdade mesmo é que, na sociedade mediatizada de hoje, o imaginário e real estão de tal maneira intrínsecos que se debilita a capacidade do senso comum de fazer a distinção entre o verdadeiro e o verossímil, isto é, entre o que efectivamente acontece e as simulações do acontecimento.

Neste sentido, poderemos atentar ao seguinte parecer conclusivo: se um assaltante como Sandro em Ônibus 174, José Padilha [2002] – documentário brasileiro - poderá ficcionalizar um assalto que se tornou mediático ou mesmo essa tua ideia dos pirómanos e do fogo posto – que não deixa de ser um acontecimento ficcional, porque foi algo premeditado e dado como natural – e vanglorizam-se pelos seus feitos ainda por cima com registos televisivos e reportagens em horário nobre,… também um grupo de moradores que, ao preparar-se para linchar um assaltante de bairro [imaginemos], pode resolver telefonar para as equipas de reportagem para registrar a cena “real” e ao vivo.

O assunto, então, já não é a realidade, e muito menos ser seu testemunho e prover um testemunho, mas sim elaborar os dados constitutivos da nossa experiência para construir a verdade.

Abraço
Vasco

RC disse...

Pois, mas dos Americanos pode-se esperar tudo!

Há pouco tempo ouvi um programa em que estavama comentar um documentário em que andava um jornalista na rua com 1 mapa mundo e perguntava às pessoas onde é que ficavam determinados países.

Mais de 80% das pessoas não os conseguiam localizar no mapa!!! E os países eram Austrália, Cuba, Alemanha, Reino Unido, Japão! Tudo países conhecidos, nada de Birkina Faso, Lesotho, Suriname, Swazilandia, Papua ou outros países de quem nunca ninguém ouviu falar!

Mas quando lhes perguntavam onde ficavam os EUA quase todos localizavam imediatamente!!! Há muita ignorância naquele país sem dúvida...

Abraço