quarta-feira, março 15, 2006

Supermulheres

A história que se segue é verdadeira, embora pequenos detalhes tenham sido alterados ou acrescentados por razões puramente artísticas. Os nomes foram alterados de forma a proteger a anonimidade dos intervenientes. Os diálogos em língua estrangeira foram transcritos em inglês de forma a tornar possível a sua compreensão pela maioria dos leitores, embora tenham ocorrido originalmente em norueguês. O uso do inglês nos diálogos é uma opcão (arriscada) do autor, de forma a transmitir parcialmente a ideia da dificuldade de traducão de algumas das expressões de uma língua para a outra. Histórias como esta (e há muitas!) converteram-me ao feminismo e ao conceito de 'likestilling' nórdico [likestilling = igualdade de oportunidades].

Domingo de manhã em meados de marco, céu azul imenso sobre Trondheim. Ligo o computador e dou uma vista de olhos na caixa de correio electrónico.
A Gunnhild escreveu-me, como prometido.
- Enjoy! ;-)
Abro o ficheiro de texto que ela me mandou, um relatório de 65 páginas. Para ler até hoje à noite, visto que o prazo de entrega finda amanhã. Apertado, mas possível.
Depois de uma sessão de treino de 2 horas de esqui no parque natural da cidade, ponho os meus olhos no trabalho. Escrevo pequenos comentários nas margens da cópia que imprimi. O estilo de escrita é correcto e exacto, embora por vezes se note uma tendência para usar a primeira pessoa, em transgressão de um dos dogmas mais enraizados do estilo de escrita científico: a impersonalidade. Mas considerando que as autoras não tinham qualquer tipo de experiência anterior em investigacão, fico estupefacto com o resultado. O relatório é coerente, bem escrito, informativo e cativante. O método utilizado é válido. Telefono novamente à Gunnhild.
- Hi!
- How is it going?
- I´m only 10 pages away from the finish. The report is good, but there is a couple of issues I would like to to discuss. Can I phone you again later?
- Even better. Go to Ingrids house and discuss with her directly. I´ll put you in touch with her.
Continuo a ler e meia hora depois recebo um telefonema da Ingrid. Combinamos encontrar-nos às 10 da noite em casa dela, que por forca do acaso fica apenas a uma rua de distância.
À entrada do apartamento, sinto-me desarmado perante o sorriso afável da atraente figura que me recebe. Oferece-me algo para beber e rumamos directamente para o quarto dela. Discutimos o relatório durante um par de horas, entre dezenas de artigos de psicologia espalhados pelo chão e volumes perdidos de Fernando Pessoa (para meu grande espanto), Jostein Gaarder e Günter Grass. Ingrid é teimosa e defende-se cerradamente das minhas críticas. Ingrid é uma perfeccionista.
- I don´t know if we have a report that is good enough to pass this subject.
Sorrio.

Gunnhild e Ingrid são duas amigas de 28 anos que estudam no quarto ano de medicina. Já conheco a Gunnhild à três anos e hoje é uma das minhas melhores amigas. Vim a conhecer a Ingrid atravès da Gunnhild, num fim-de-semana nas montanhas numa paisagem comparável aquela que nos é apresentada nos ecrãs no filme "Brokeback Mountain". Ambas são globetrotters, cidadãs do mundo. Ambas falam inglês e espanhol fluentemente, Gunnhild gracas a uma estadia de um ano na Argentina quando tinha 17 anos, Ingrid por forca da necessidade como estudante ERASMUS em Bilbao o ano passado. Gunnhild também conhece bem a Índia e parte do sudeste asiático e médio oriente. Gunnhild é inteligente, culta, alguns centímetros mais alta do que eu, de longos cabelos louros que a tornaram atraccão instantânea para criancas enquanto viajava no sul da China. A Ingrid é um pouco mais baixa, atlética, de olhos de um azul oceânico e uma candura quase infantil, amante da natureza, literatura e de arte. Ingrid costuma passar férias de verão sozinha algures na tundra polar em Finnmark ou Troms, no extremo norte da Noruega, equipada apenas com uma cana de pesca e uma tenda de campanha.
No outono passado decidiram juntar-se para realizar um projecto de investigacão, como parte de uma cadeira semestral do curso de medicina. Resolveram estudar um fenómeno de adaptacão psicológico chamado "resilience". "Resilience" é a capacidade que certos indivíduos possuem de passar por experiências traumáticas sem desenvolverem sintomas de PTSD (Post-Traumatic Stress Disorder). O sentimento de pânico sem razão aparente, neofobia, ansiedade, dificuldades de concentracão, urinarem na cama à noite, entre outros, são sintomas típicos de PTSD em criancas. Gunnhild e Ingrid necessitavam de um grupo relativamente grande de criancas expostas recentemente a uma situacão de stress traumático e posteriormente classificadas como "resilient". Um factor que contribuiria para fortificar as conclusões do estudo seria se o fenómeno traumatizante fosse, na medida do possível, homogéneo para a populacão do estudo. A solucão surgiu-lhes durante uma discussão de café numa temperada noite de outono. Fizeram as malas com um destino na cabeca. Faixa de Gaza, Palestina.

Gunnhild e Ingrid viajam na faixa de Gaza durante três semanas em Novembro, depois de pagarem do seu próprio bolso, aparte dos habituais custos de viagem, 1000 euros por um seguro de vida que o governo norueguês impõe a deslocacões de alto risco. Para pagar possíveis evacuacões de emergência, cuidados hospitalares em países estrangeiros, ou custos de habitacão permanente debaixo de seis palmos de terra com acabamentos interiores em pinho ou mogno, consoante o gosto dos familiares. São duramente interrogadas e revistadas pela polícia israelita nos checkpoints e no aeroporto. Arranjam um contacto na universidade local, uma estudante palestiniana de mestrado em psicologia, que as ajuda como intérprete. Juntas visitam cinco agregados familiares e interrogam quase duas dezenas de criancas. Criancas cujos pais foram levados ou executados a meio da noite em rusgas realizadas pelo exército israelita. Criancas que vivem orfãs, mas que continuam a sorrir e a sonhar com uma vida melhor, apesar de tudo. O resultado são as 65 páginas que recebi esta manhã na caixa de correio.

Segunda de manhã, o termómetro faz greve nos -10, mas o sol continua a sorrir. Ligo o computador. Vejo o nick da Gunnhild no messenger.
- So, have you delivered the report?
- Yes, free at last!! Finaly, no more stress. I think I´ll start planing my next year now.
- What´s the plans then?
- Well, I passed through the office of "Leger Uten Grenser" [Médicos Sem Fronteiras] an hour ago. It seems they need some people who can speak spanish to go to Colômbia next year, for some vaccination campaign. What do you think?

2 comentários:

RC disse...

Pois é uma história típica da escandinávia. O espírito cívico está muito enraizado nos valores da sociedade. A coragem de arriscar como as tuas colegas arriscaram, também é grande, daí que por cá tanta gente tente iniciar o seu próprio negócio e um emprego estatal seja visto quase como uma forma de progredir lentamente na carreira!

Abraço

Anónimo disse...

Tens de mas apresentar. Tou com o "síndrome pós escandinávia" - todas as raparigas portuguesas (sejam bonitas ou feias)me parecem tremendamente enfadonhas e desinteressantes! LOL!
Pedro