domingo, abril 02, 2006

O desejo do Outro




Em Fight Club, David Fincher (1999) as referências a Freud são inúmeras mas a diretriz principal seguida pelo filme é a dualidade do ser humano, entre as forças do inconsciente e a razão. A própria descrição de Tyler (alter ego) feita pelo narrador (protagonista) reforça essa afiguração dual do Outro. Tyler é responsável pela montagem de filmes a serem exibidos nos cinemas. No entanto, ele não faz o seu trabalho de forma convencional: entre uma cena e outra de um filme infantil, ele coloca fotogramas de órgãos genitais masculinos. Essa é uma clara metáfora sobre o subconsciente e seu papel nos sonhos. "Enquanto todos dormem, ele trabalha", (sonhos diurnos de Mascarello e Freud), diz o personagem de Norton, voice over.

Assim, o cinema seria comparável ao sonho e Tyler, ao subconsciente. Na teoria psicanalítica freudiana, o sonho seria o meio encontrado para o subconsciente se expressar. Além disso, o sexo (bem presente em várias sequências) e suas representações são o pilar fundamental de todas as neuroses e problemas psiquiátricos do ser humano. Tyler representa uma válvula de escape (fantasma) para o personagem sem nome interpretado por Norton. O relacionamento entre eles vai se estreitando, principalmente após o apartamento de Norton ir pelos ares. Na obra de Freud (O poeta e os sonhos diurnos , 1908) há um exemplo-chave que vai analisar o jogo infantil como analogia do fantasma, o famoso jogo do carrinho: a criança pequena tem um carrinho atado a um fio e atira-o fora do berço e volta a recolhê-lo. Um jogo repetitivo: quando atira o carrinho diz fort (fora) e quando o recolhe da (aqui).

A criança manifesta um verdadeiro regozijo perante este jogo a respeito do qual Freud vai dizer que a criança nao joga sozinha e que à partida se joga com o Outro materno. Este jogo está em reacção com a ausência da mãe, é com esta ausência com a qual a criança joga, joga com um Outro domesticado até ao ponto que se pode identificar com o carrinho mesmo. É neste conflito que o protagonista do filme em análise se encontra. Ele evoca um Outro Eu porque sentirá, necessariamente, a falta do anjo tutelar e maternal de figura feminina (Marla Singer). Devido aos actos-falhados não resolvidos ele terá de se auto-figurar numa afiguração idealizada na sua realidade (psíquica) e criar outra imagem (fantasma) de forma a satisfazer as suas necessidades e resolver os seus complexos. Acontece que, depois de tanto brincar com o seu amigo imaginário (fort-da) vezes consecutivas, ele próprio se emaranhou na fantasmagoria criada por si e criou mesmo outra pessoa (dualidade personificativa).
O protagonista joga com a ausência de um vulto feminino ( a mãe não aparece, mas aparece Bob com seios gigantescos e Marla, com quem somente o seu alter ego consegue relaccionar-se sexualmente), assim como a criança joga com a ausência da mãe, ausência que se faz presente do seu desejo; quando nao está, não se pode perguntar a que se deve essa ausência, mas sim qual é o seu desejo (?). Na angústia suscitada pelo enigma do desejo (evocação) do Outro materno a criança produz essa maquinação do Fort-Da.

Trata-se de domesticar esse desejo do Outro que suscita angústia e obter a partir desse fundo de angústia um prazer através da sua maquinação lúdica. O que ilustra este jogo é generalizado ao fantasma: o fantasma é uma máquina que se põe em jogo quando se manifesta o desejo do Outro (imagens subliminares em Fight Club - evocação), uma máquina destinada a proteger-se da angústia e coordenando o gozo ao prazer.


O fantasma desencadeia-se, portanto, quando encontramos uma falta do Outro, uma falta de significante que responda qual é o seu desejo (?). Perante este enigma do desejo do Outro a resposta é o fantasma. Ora, é sob esta conjuntura teórica que Fight Club, David Fincher (1999) se vai debruçar. É pelo desejo do outro (na sua realidade psíquica) que o protagonista vai evocar um alter ego que se manifesta em forma de imagens subliminares no inicio do filme: antes de Tyler Durden (o Outro) surgir em cena, a sua evocação é feita através do dispositivo técnico de 4 fotogramas isolados inseridos no decorrer do filme, tendo como intencionalidade expressiva o desejo pelo Outro. É isso que vemos.
Estas imagens inseridas no filme vão produzir mediação e rematerializar um mundo desaparecido, não só porque os fantasmas entram no mundo dos vivos através do aparelhos mediáticos ( no próprio filme -ficção dentro da ficção- Tyler Durden é projeccionista “ o circulozinho à direita quer dizer que se vai mudar de bobine” e ele coloca um fotograma pornográfico na mudança de bobines em filmes infantis e “o público não se apercebe”), mas principalmente porque são essas imagens subliminares (memórias/evocações) que nos transtornam no filme. Apesar desse efeito traduzir bem o que vive o personagem principal que está o tempo todo como que preso num sonho, dizendo o tempo todo que não sabe o que é real; isso tudo, o tempo todo, as imagens incomodam o leitor e deixa a leitura ser desconfortável. Não que isso seja uma desvantagem. É claro que não.
Vasco Lopes, Rio de janerio

1 comentário:

RC disse...

Bem, este é sem dúvida um dos meus filmes favoritos, mas psicologia e filosofias nunca foram o meu forte por isso é-me impossível fazer um comentário decente ao teu texto!

Penso que este filme, é bem mais que isso! Tu falas e bem da parte psicológica, das frustrações, da repressão de sentimentos que resulta no fenómeno da dupla personalidade do personagem principal. A critica à sociedade que funciona como uma máquina está presente em todo o filme, bem como a crítica À sociedade americana!

Gostava imenso de ter uma discussão construtiva contigo mas nestas áreas não consigo entrar!

Abraço,

RC

ps:o final deste filme é simplesmente fantástico. A música de pixies, juntamente com o climax final são simplesmente deliciosos. Ainda me lembro de eu e o grupo com quem fui ver o filme ficarmos sentados a ver passar o genérico do filme sem conseguirmos dizer uma palavra de tão envolvidos estarmos no filme!