quarta-feira, maio 03, 2006

Pelle, o Conquistador


Na bela manhã do primeiro de Maio de 2006, dou comigo a acordar cedíssimo e sem nada que fazer, para além de trabalho, muito e infindável, que espera por mim pacientemente e intrasigente no meu escritório a meros duzentos passos de casa. Ligo então o televisor - vicío este que comeca a ser habitual - e surpreende-me a figura envelhecida e hesitante de Max Von Sydow perdido no nevoeiro dinamarquês, a caminho da quinta de Stengården. Não fosse este ser o primeiro de Maio e o romance centenário "Pelle, Erobreren" escrito pelo dinamarquês Martin Andersen Nexø entre 1906 e 1911, ser o expoente máximo da literatura socialrealista com inclinacões comunistas no cenário escandinavo. O filme homónimo que venceu o Óscar de melhor Filme Estrangeiro em 1988 baseia-se no primeiro volume da obra de Nexø, "Barndommen", no qual a infância da personagem principal, Pelle, é retratada. A obra prossegue com três outros igualmente extensos volumes que retratam a aprendizagem da profissão de sapateiro na cidade de Rønne, o seu crescimento como adolescente, a migracão para Copenhaga onde Pelle se estabelece, o crescimento da sua família e a luta como líder do movimento sindical. O romance debruca-se principalmente sobre o aparecimento e crescimento do movimento sindical organizado na Dinamarca e na luta do proletariado dinamarquês. O livro é quase auto-biográfico. No entanto, o realizador Bille August retrata-nos a dureza da vida dos trabalhadores emigrados do sul da Suécia para a Dinamarca e, especialmente, na relacão entre pai (Lasse) e o seu filho (Pelle) no filme de 1988. A luta pela existência e a desigualdade social, temperadas por um forte toque de humanismo, são alguns dos aspectos mais relevantes que nos são transmitidos ao longo da história. A adaptacão cinematográfica brilha pela capacidade do realizador em concentrar a atencão da narrativa nas duas personagens principais. No livro, a narrativa é uma empresa colectiva onde a vida de todos os habitantes da quinta é descrita em paralelo.

Lasse e Pelle emigram da região de Skåne, no sul da Suécia, para a ilha de Bornholm, em pleno mar Báltico, com o sonho de arranjar emprego. A Dinamarca era vista então, por parte dos suecos de Skåne, como a terra do leite e do mel, onde todos são ricos e gozam uma boa vida. No entanto, as condicões de vida na Dinamarca e na Suécia em finais do século XIX acabam por não ser assim tão diferentes. Pai e filho tem dificuldade em arranjar trabalho: Lasse por ser demasiado velho, Pelle por ser demasiado novo. Acabam por ser contratados pelo proprietário Kongstrup e mudam-se para a quinta de Stengården ("Quinta de Pedra"), onde todos os sonhos se perdem. O mundo rui para Lasse, enquanto Pelle enfrenta corajosamente o seu futuro. Lasse aceita impotente e com resignacão o seu destino, ao contrário de Pelle que se adapta e mantém a capacidade de sonhar, facto este que se expressa até a nível linguístico: Pelle aprende e utiliza o dinamarquês após alguns meses na quinta, enquanto Lasse continua a utilizar o sueco cantante de Skåne ao longo de todo o filme (curiosamente, Max Von Sydow nasceu em Lund, sendo o Skånsk provavelmente o seu dialecto original). Pelle estabelece uma relacão de amizade com Erik, o revoltado, e juntos partilham o sonho de se libertar da escravidão da quinta e emigrar para a América e conquistar o mundo. Por fim, mesmo apesar da desistência de tanto Erik como de Lasse, Pelle abandona Stengården e parte sozinho rumo ao desconhecido, deixando uma réstea de esperanca em aberto no final do filme.

O filme é um diamante do cinema escandinavo, talvez um dos maiores. É uma das melhores interpretacões na carreira de Max Von Sydow, premiada com a nomeacão para o Óscar de melhor Actor desse ano. Max Von Sydow é daqueles actores que já fez todos os papéis possíveis e imaginários, entre os quais: em 'The Seventh Seal' (1957) , 'Nils Holgerssons underbara resa' (1962) , como Deus em 'The Greatest Story Ever Told' (1965), como padre em 'The Exorcist' (1973), imperador Ming em 'Flash Gordon' (1980), rei D. João II de Portugal numa série de TV 'Cristovão Colobo' (1985), vilão em 'Minority Report' (2002), entre muitos, muitos, muitos outros (na sua carreira contam-se presencas em 128 filmes desde 1949 até hoje, contando-se producões suecas, dinamarquesas, italianas, francesas, americanas, norueguesas e alemãs). Para além deste, temos a interpretacão infantil de Pelle Hvenegaard (Pelle) e o papel de Bjørn Granath (Erik) como igualmente interessantes. Para os mais ligados ao cinema escandinavo, note-se também um dos primeiros papéis da actriz dinamarquesa Sofie Gråbøl como Miss Sine.

Para os amantes de cinema, recomenda-se. Para os amantes da cultura Escandinava, um filme a não perder, tanto pela mescla de dialectos e tradicões escandinavas, como também pelos pormenores sociohistóricos. E pela paisagem - o cinzento plano e quase desértico da paisagem costeira dinamarquesa é dominante em todo o filme. Para os (ainda) mais interessados, recomenda-se a leitura do livro e talvez até uma visita ao túmulo do autor no cemitério Assistens Kirkegård no bairro de Nørrebro em Copenhaga (juntamente com os túmulos da família Bohr, do filósofo Søren Kirkegaard e o escritor Hans Christian Andersen) . Só de escrever isto, dá-me saudades da Dinamarca!

Hei hei! E até para a semana! ;-)

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