T. é provavelmente a mulher fisicamente mais forte que alguma vez conheci. T. tem 1,72 e pesa 67 kg, apesar de já ter pesado 76 kg aquando do topo da sua carreira de esquiadora de slalom super-G, à uns anos atrás. T. nasceu em Narvik, a cidade que deu a conhecer ao mundo a primeira derrota do exército de super-homens da Wehrmacht. T. foi campeã nacional de esqui slalom super-G duas vezes. T. é uma sorridente norueguesa de 25 anos, de macãs do rosto salientes e fortes, corpo enrijecido e hiperactiva por natureza. T. dorme hoje à noite nos meus bracos, enquanto o vento sopra forte lá fora e a neve cobre o mundo de brancura, uma vez mais. T. é forte, mas vulnerável, aqui e agora, um corpo inerte e quente, macio, inconsciente, distante. T. muda-se para Oslo daqui a uns meses, mas este pormenor é-me ainda desconhecido.
Quando a encontrei sobre a ponte nova da cidade, T. acolheu-me literalmente de bracos abertos, mas isso foi no inicio da noite, pouco mais que uma hora após a meia-noite de sábado. Uma garrafa de vodka ucraniano e duas cervejas depois, estamos os dois de bracos dados a caminho de sua casa, um velho edifício de dois andares de madeira, caiado de amarelo. T. é-me ainda estranha por esta altura da noite, mas é persuasiva e sedutora, num convite prenunciado à porta do tal casarão amarelo. T. não quer dormir sozinha, T. está farta da vida de solteira, das bebedeiras, do enfado e da homogeneidade da vida nocturna, da solidão e do entediamento.
Umas horas depois, pela madrugada tardia do outono, acordo com o som da TV, emissão desportiva de domingo, estafeta de esqui nórdico primeiro e Taca do Mundo de Slalom no Canadá. T. conta-me acerca da sua carreira como esquiadora de alta competicão, das sessões infindáveis de treino, das poucas lesões e das quedas acima dos 120 km/hora, dos acordares no hospital horas depois. T. conta-me dos sonhos de fugir daqui, da nova vida que a espera em Oslo daqui a pouco. T. pergunta-me se a quero ver uma vez mais antes da fuga para o sul.
T. e eu vamos juntos à mercearia local comprar leite e tomamos o pequeno-almoco na casa de uma amiga comum. Quando saio porta fora a meio da tarde de domingo, caminho em direccão a casa bem consciente de que vou ter saudades de T., provavelmente muitas, que vou passar umas noites de telemóvel na mão, na esperanca de uma mensagem oportuna. À espera de uma mensagem que nunca receberei. Quando saio pela porta fora da casa da amiga, e quando T. uma vez mais me rodeia com os seus bracos musculados, estou bem consciente de que esta é a ultima vez que vejo T., uma mulher forte mas sensível, cheia de sonhos e de esperancas de uma vida diferente, dum enredo no qual não faco parte do cenário.
Sobra a brancura virginal da neve recèm caída, imprimem-se os meus passos enquanto caminho, num momento, apenas, interrompidos, até que o nevoeiro e eu nos tormemos um só, uma vez mais, até que novos flocos de neve apaguem a minha passagem por esta paisagem...