quarta-feira, abril 12, 2006

V for Vendetta



Os irmãos Wachowski hão-de ser sempre recordados pelo seu trabalho revolucionário na criacão do universo apresentado na triologia da "Matriz". Pela primeira vez na história do cinema foi-nos apresentada uma versão inspirada no ambiente sci-fi da BD de uma forma totalmente satisfatória até para o mais exigente apreciador de literatura de fantasia. A "Matriz" é uma mescla de épico futurista, visão tecnológica, romance de accão e ensaio de filosofia num só, soberbamente empacotada com os mais avancados efeitos visuais do virar do século XXI. Daí a minha curiosidade em relacão ao seu trabalho seguinte, nomeadamente, "V for Vendetta" ("V de Vinganca" na [feliz] traducão portuguesa).

Mais uma vez partiu-se do imaginário BD. O filme é uma adaptacão da novela gráfica homónima de Alan Moore e David Lloyd (desenhador) publicada originalmente pela editora Quality Comics na Grã-Bretanha entre 1982 e 1988. Na altura em que foi publicada, a história servia o leitor com um ataque directo às políticas conservadoras do governo de Margaret Thatcher. Ao ver o filme, fica-se com a (forte) impressão de que o foco de crítica nesta versão é orientado claramente na direccão da regente administracão norte-americana: a tal ponto que levou a que Moore expressasse o desejo da retirada do seu nome no genérico final. As conotacões e opiniões políticas expressas no filme apresentam um debate entre o neo-conservatorismo versus liberalismo na sociedade norte-americana. Na obra original o autor pretendia que o leitor reflectisse sobre a oposicão entre um estado fascista totalitário e uma sociedade anárquica, e sobre a validade do uso de quaisqueres meios para atingir um fim. A figura do herói era moralmente ambígua e cabia ao leitor julgá-lo: determinar se V era são ou insano, herói ou vilão. V é, sem sombra de dúvida, um terrorista. Na versão cinematográfica, a narrativa acaba por forcar esse julgamento numa direccão favorável a V.

É curioso saber que os irmãos Wachowski escreveram uma primeira versão do script durante a década de ´90, ainda antes de se debrucarem sobre o projecto da "Matriz". Face aos desenvolvimentos mais recentes da histórial, o tema deste filme tornou-se tremendamente actual. O governo fascista representado no filme persegue, encarcera e tortura os imigrantes, os muculmanos e os homossexuais. O tema da liberdade de expressão e da independência dos canais de informacão é exposto através da relacão entre o canal principal BTN e o estado (algumas vozes teceram aqui um paralelo com a relacão entre a Fox News e o governo americano). O uso dos sacos negros na deslocacão de prisioneiros políticos lembra as imagens da base de Guantanamo. O uso de sistemas de vigilância de vídeo para o incremento da seguranca pública atinge um ponto hilariante neste filme quando pensarmos que Londres é a cidade com a maior concentracão destes sistemas no mundo. Tudo isto "for your own protection", segundo os letreiros espalhados pelo país. O maior vilão deste filme acaba por ser, não os dirigentes ou o partido que se senta no poder, mas sim a própria populacão que os colocou lá por forca do medo e do conformismo - mensagem política omnipresente, à la Michael Moore. Eu colocaria este filme na mesma categoria que os recentes "Syriana" e "Good Night and Good Luck", embora se trate de uma ficcão colhida da cultura pop.

A própria escolha dos actores tem um toque de ironia. John Hurt (Chanceler Sutler) interpretou o oprimido Winston Smith na adaptacão de "1984" de Michael Radford; e Natalie Portman (Evey) é americana de ascendência israelita que rapa o cabelo numa cena que evoca os campos de concentracão nazis (Evey personifica uma heroína quase totalmente passiva; ela é os olhos da narracão neste filme). Hugo Weaving (V) empresta a sua presenca física e a sua voz para ditar longos monólogos teatrais quasi-shakespereanos, deixando uma certa impressão de que assistimos a uma versão politizada do "Fantasma da Ópera" de Gaston Leroux. Talvez seja ainda cedo para tecer pontes entre os diversos filmes produtos da imaginacão Wachowskiana, mas entre "V" e "Matriz" encontramos vários pontos em comum: um herói sobre-humano e trágico que oferece a sua vida pelo bem da humanidade (V/Neo); uma heroína secundária com um papel menor mas determinante, com tracos andróginos (Evey/Trinity) e com uma ligacão emocional com o herói que se vai fortalecendo ao longo da história; um cenário futurístico e tecnológico resultado de um acontecimento passado global semi-apocalíptico; uma sociedade reprimida e carente de liberdade individual; a massa anónima da humanidade que anseia por ser libertada, um anseio primeiramente inconsciente e que se vai tornando mais e mais evidenciado com o desenrolar da narrativa. Curiosamente, quase apetece incluir a saga de Star Wars neste grupo - terá sido uma fonte de inspiracão?

Em conclusão, não recomendo este filme para aqueles que pretendem regalar-se com um filme de accão recheado de avancados efeitos especiais e cenas de luta detalhadamente coreografadas. O ritmo do filme é quase teatral. O filme é rico em referências cruzadas, desde Shakespeare a Dumas, e requer uma certa dose de conhecimento contextual histórico/político de forma a se compreender as muitas insinuacões que se escondem no enredo. É um filme intelectualmente rico, embora por vezes moralmente confuso. "V for Vendetta" é uma espécie de versão moderna de "1984" de Orwell apresentada pelo duo de nerds mais enigmático dos últimos anos.

E, independentemente do enredo e à falta de outras desculpas para ir ao cinema, Natalie Portman é a cabeca rapada mais atraente desde Sinnead O´Connor ... ;-)


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